Fazia frio naquela noite de 8 de junho de 1958 em Uddevalla, cidadezinha na Suécia. Ali, no estádio Rimnersvallen, o Brasil estreava na Copa do Mundo contra a então perigosa Áustria. A Seleção vencia por um 1 a 0, gol de Mazzola. O jogo não estava nada fácil. Aos seis minutos do segundo tempo, um lance mudaria a partida e, de certa forma, contribuiria para uma nova ordem do futebol mundial. O time austríaco tentava atacar pelo lado direito. A bola foi lançada para o ponta Horak. Nilton Santos, o lateral-esquerdo brasileiro, à época já com 33 anos, se antecipou. Tomou-lhe a bola e se lançou ao ataque.
- Volta, Nilton! - berrava o técnico Vicente Feola, preocupadíssimo com o contra-ataque.
Como todo craque que se preza, Nilton Santos desobedeceu às ordens do treinador. Voltar, nada. Seguiu na arrancada, incomum aos laterais, na época meros marcadores. Tabelou com Mazzola e, na área, tal como um atacante extraclasse, tocou com categoria por cima do goleiro: era o segundo gol brasileiro na vitória por 3 a 0. Ali começava o caminho do primeiro título brasileiro. Ali começava uma nova forma de se atacar. Ali o mundo começava a conhecer, de fato, o maior lateral-esquerdo de todos os tempos. Nada menos que a Enciclopédia do Futebol, como era carinhosamente chamado Nilton Santos, bicampeão mundial pelo Brasil, tantas vezes campeão pelo Botafogo, único clube em que atuou e hoje chora, com todo o Brasil, a sua morte, aos 88 anos, após infecção pulmonar e longa luta contra o mal de Alzheimer. O ex-jogador estava internado desde sábado à noite na Fundação Bela Lopes, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, com complicações respiratórias.
Ao ser informado do falecimento, o presidente Maurício Assumpção imediatamente ordenou que a bandeira alvinegra fosse colocada a meio mastro na sede de General Severiano. O ex-jogador deve ser velado no salão nobre da sede, na Zona Sul do Rio. O clube emitiu uma nota oficial de lamento pela morte.
São muitas as histórias emblemáticas de Nilton dos Santos, nascido a 16 de maio de 1925 na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Se em 1958 o craque mostrou que lateral podia atacar e até se aventurar a fazer gols - marcou 11 como profissional em toda a carreira, um número alto para a época -, no bicampeonato mundial de 1962 fez da malandragem uma arma poderosíssima para salvar o Brasil. Nilton Santos era Enciclopédia até para consertar o próprio erro.
Foi no jogo contra a Espanha, em Viña del Mar, no Chile, em 6 de junho. A Seleção perdia por 1 a 0 e estava desnorteada quando o lateral derrubou na área o ponta Enrique Collar. Era pênalti. Mas o árbitro estava distante do lance e não percebeu os dois passos à frente de Nilton logo após ter feito a falta. E esses passos o deixavam fora da área. Foi o suficiente para o chileno Sérgio Bustamante marcar falta. O Brasil acabou vencendo por 2 a 1 e caminhou rumo ao bicampeonato mundial.
Bastariam essas duas histórias para Nilton Santos entrar para a história do futebol. Mas Nilton Santos fez muito, muito mais. Era tão bom e perfeito com a bola nos pés que ganhou o apelido de Enciclopédia. De fato, sabia tudo de bola. Que o digam os torcedores do Botafogo, beneficiados pela exclusividade de vibrar com as jogadas do maior lateral de todos os tempos - é oficial, a Fifa reconheceu em 2000.
Alto (1,84m), habilidoso (ambidestro), veloz, clássico, elegante, forte. Nilton já era assim desde moleque, tanto no futebol de praia quanto no Flexeiras, onde chegou com 14 anos após experiência no remo, que lhe dera mais força física. E foi assim que se fez no Botafogo, onde chegou com 23 anos após ter se destacado no time do Exército - era o único soldato em meio a tenentes e capitães.
Santo baile de Garrincha
Ao assinar contrato em branco com o clube, se tornou o maior soldado em preto e branco: é o recordista de jogos (718 partidas), ganhou o Rio-São Paulo de 1962 e 1964 e foi campeão carioca em 1954, 1957, 1961 e 1962. No bicampeonato estadual, formava o timaço-base da Seleção bicampeã mundial, com Didi, Zagallo, Amarildo... E Mané Garrincha.
Aliás, Garrincha e o ex-lateral estavam sempre ligados por causos curiosos. Nilton Santos era Enciclopédia até para levar um baile. Foi o que aconteceu no primeiro treino do Mané no clube alvinegro. O jogador das pernas tortas nem tomou conhecimento do astro botafoguense.
- Ele me deu um baile. Pedi que o contratassem e o pusessem entre os titulares. Eu não queria enfrentá-lo de novo - disse certa vez, às gargalhadas, o maior fã da Alegria do Povo, como passou a ser chamado Mané.
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