O Jornal Nacional exibe a segunda reportagem especial da série O Quinze: Travessia. A reportagem mostra o sertão do Ceará, um século depois da seca terrível de 1915.
Décadas depois da publicação do livro de Raquel de Queiroz, a estiagem no Nordeste ainda expulsa moradores da região.
O que fazer quando por baixo da ponte já não passa um rio? Há 100 anos, Rachel de Queiroz escreveu que: "a água dos riachos afina, afina, até se transformar num fio gotejante e transparente".
Hoje, nem mais um fio transparente passa pelo rio, e ele já fica na chegada da serra, um pouco antes de Capistrano, no Ceará.
Em uma parte do caminho, a situação deveria ser um pouco melhor, mas logo ao chegar na primeira cidade, uma situação intrigou os repórteres: muitas casas à venda.
Há 100 anos, Chico Bento não teria tempo de pensar, antes de vender uma casa de taipa. É que na história, ele era um tratador de gado, encarregado em uma fazenda. E ele teve que ir embora na hora em que recebeu este bilhete: "Minha tia resolveu que não chovendo até o dia de São José, você abra as porteiras e solte o gado. É melhor sofrer logo o prejuízo do que andar gastando dinheiro à toa em rama e caroço, para não ter resultado. Você pode tomar rumo ou, se quiser, fique nas aroeiras, mas sem serviço na fazenda. Sem mais, do compadre amigo".
Com a seca, sem comida, sem dinheiro e sem nenhuma opção. Agora, e os Chico Bentos de hoje? O que os motiva a ficar? E o que os impede de sair? O desejo de deixar o sertão já estava no livro da Rachel de Queiroz há 100 anos.
Sobre um outro personagem, filho de um fazendeiro, ela escreveu o seguinte: que ele tinha "uma vontade obscura e incerta de ascender, de voar! teve um súbito desejo de emigrar, de fugir, de viver numa terra melhor, onde a vida fosse mais fácil e os desejos não custassem sangue”.
Essa vontade ainda existe hoje? A reportagem descobre nesse episódio de O Quinze: Travessia.
A Ivani ajeitou a vida no lugar em que nasceu. A galinha bota o ovo logo na entrada da casa. As filhas estão na escola. E agora uma boa reserva de água: “Cisterna para a gente foi uma benção. Só ter água pra cozinhar e beber, água da chuva. A coisa mais difícil é ter água aqui”, ela conta.
A cisterna é ligada à calha da casa. Na época de chuva, ela sempre enche. “Desde que eu ganhei ela, ela não secou ainda não para ficar”, diz a agricultora.
Mas nessa época de seca, a calha não pode nem ficar conectada. “Essas telha pega muito poeira, muita coisa, então se ela tiver embicada já cai dentro. Aí quando começar o inverno, eu coloco. Agora tem, mas está pouco”, afirma Ivani.
Todos os vizinhos têm a cisterna que é um projeto do Governo Federal.
Ivani nem pensa em sair do local. O pai trabalha em uma fazenda logo à frente, colhendo a joia do sertão. “Quando o inverno era bom dava melhor, mas agora estiagem, falta d'água. Nós vendemos para a fábrica para fazer suco e o podre dá para o gado comer”, ela conta.
Quando passava pela região, Chico Bento e a família já estavam magros e sentiam muita fome. Foi nessa hora que um dos filhos ficou para trás. Encontrou uma planta, cavou o chão, e como conta o livro, "avidamente roeu todo o pedaço amargo".
Só que a planta era uma mandioca braba. O menino morreu em pouco tempo. Hoje não há mais fome pelo caminho. O índice de mortalidade infantil na região é o mesmo do resto do Brasil.
Se a vida melhorou, por que tanta gente ainda assim quer se mudar? A mãe da Claudiane se mudou antes mesmo de conseguir vender a casa.
“Ela criou nós todos aqui e agora foi necessário ela se mudar porque tem os meninos pequeno, já são de idade, não pode mais carregar água. Tem bastante gente vendendo a casa aqui por falta d’água”, ela comenta.
“Me mudar para ficar mais próximo da agua, porque tá difícil”, justifica outro Chico, que também pensa em partir.
Trabalha na construção, mas sem água, quem é que constrói? A diferença da história dele é que pode esperar.
“Fome ninguém passa não. Antigamente passava fome. Tem o Seguro-Safra, Bolsa- Escola, por isso não existe mais a fome. Pessoal passava fome primeiro, mas agora não passa mais não. Dificuldade, mas pouco”, ele diz.
Mesmo assim, a vontade de sair é como a que descreveu Raquel de Queiroz: uma vontade obscura e incerta de ascender, de voar, mesmo que sejam pequenos voos.
Fonte: G1
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