sábado, 28 de setembro de 2013

Tribo ianomâmi vive sob ameaça de garimpeiros e manda recado a Dilma

Ilustrativa
É uma luta silenciosa, difícil, que se passa no coração da densa floresta amazônica, ao longo da fronteira venezuelana, nos planaltos brasileiros de noites frescas e dias banhados de suor. Somente as crianças, "vestidas de sol", como dizem pudicamente os padres missionários, parecem não dar nenhuma importância ao espetáculo ao redor.

Em toda parte se vê o cansaço nos rostos. Há cerca de 20 homens e mulheres, sentados sob uma grande lona, protegidos em uma tentativa de sombra. Mais abaixo, outros se amontoam dentro das tendas, dormindo em redes ou agachados em torno de uma fogueira que foi acesa para espantar mosquitos e esquentar as tapiocas.
Eles falam pouco, com o olhar preocupado e gestos elementares sobre barrigas inchadas pela verminose, os pés muitas vezes corroídos pelos vermes. Mais de uma centena de ianomâmis vão todos os dias até essa pequena colina na serra de Surucucus, no oeste do Estado de Roraima, para serem tratados por uma equipe de médicos voluntários. Eles chegam a pé após quatro dias de caminhada, muitas vezes, ou em um pequeno avião monomotor fretado pelos Expedicionários da Saúde (EDS), uma impressionante ONG de Campinas, perto de São Paulo.
Pela segunda vez em 11 anos, ela se instalou por uma semana com suas salas de cirurgia móveis nessas terras onde 16 mil ianomâmis vivem na pré-história do país, ou melhor, em sua outra vertente. O lugar, que é um formidável posto de observação dos males do momento, lembra uma fortaleza aberta de onde os índios ainda não foram desalojados de suas áreas de caça e coletas pelo avanço das frentes pioneiras. "Mas a situação deles é preocupante", observa Ricardo Affonso Ferreira, ortopedista, fundador e coordenador do projeto. "Ela até piorou."
Com o nome colado por uma fita adesiva no peito, uma touca azul na cabeça, Mauas é um paciente comum. Assim como a maioria ali, ele não sabe sua idade. Assim como muitos, ele está vindo se consultar com um médico pela primeira vez. Mauas está esperando para ser operado de catarata, um mal que o atormenta há dez anos e o impede de participar das atividades tradicionais dos homens ianomâmis. Um cotidiano que se tornou ainda mais desconfortável pelo fato de que os garimpeiros de ouro, que foram embora há muito tempo, voltaram para as proximidades de seu vilarejo. "Eles estão poluindo novamente nosso rio", ele diz, "perturbando nosso meio ambiente, criando conflitos permanentes, em total impunidade".
Palavras curtas e grossas, repetidas pela maioria de seus colegas, que deixam transparecer um sofrimento crescente e um sentimento de abandono. "Os ianomâmis estão sob uma pressão permanente", afirma Rogério Duarte do Pateo, antropólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais que acompanha a expedição dos EDS. "Além da piora dos serviços básicos de saúde e das manobras cada vez mais contundentes das autoridades para tirar proveito desses espaços, ricos em recursos de minérios, há também a violência dos garimpeiros, que, com a crise e o aumento do preço do ouro, voltaram a se instalar na região." 
Até o início do século 20, os ianomâmis imaginavam estar sozinhos no mundo, ou quase, protegidos pelos contrafortes do vale do Orinoco, ao norte, e pelos afluentes do rio Branco e do rio Negro, ao sul. Os primeiros contatos com os brancos, extrativistas, viajantes estrangeiros, militares e agentes de proteção indígena foram nos anos 1930. Ao longo das décadas seguintes, missões católicas e evangélicas se estabeleceram na periferia de seu território, fonte de trocas, mas também de epidemias fatais.
No início dos anos 1970, os índios foram ameaçados pelo projeto de construção de uma rodovia transamazônica – a Perimetral Norte. Ele foi abandonado. Depois, em meados dos anos 1980, houve a corrida pelo ouro. Cerca de 40 mil garimpeiros invadiram a região com suas máquinas para raspar o leito dos rios e construir pistas de aterrissagem. Mais de mil ianomâmis morreram – cerca de 13% da população  - , dizimados pelas doenças trazidas pelos garimpeiros.
Sob o efeito conjugado de pressões internacionais, ações locais e alternância política em Brasília, a invasão dos garimpeiros foi contida a partir dos anos 1990. As autoridades federais legalizaram seu território, em 1992, com o nome de Terra Indígena Ianomâmi: 96.650 quilômetros quadrados – uma superfície ligeiramente maior que a de Portugal – nos quais vivem 300 grupos.
Em 1999 foi a era de ouro. O governo decidiu transferir a gestão dos serviços sociais e de saúde para as ONGs, mais em sintonia com as populações locais. Mas a experiência durou pouco. O governo Lula inverteu a movimentação em 2004 e devolveu as chaves ao Estado federal. Os orçamentos aumentaram, mas o sistema perdeu em qualidade. Casos de corrupção foram denunciados. As epidemias foram contidas graças aos cerca de 40 postos de saúde disseminados pelo território, mas faltavam cada vez mais primeiros socorros.
Absenteísmo, falta de equipamentos, infraestrutura deficitária: a Casa do Índio, situada na periferia de Boa Vista, capital do Estado, revela as carências do sistema. Diariamente, a instituição vê um amontoamento de 500 doentes, à espera de uma intervenção no hospital público da cidade. Deve-se esperar de duas a três semanas, na melhor das hipóteses.
Davi Kopenawa dá de ombros. Xamã respeitado e porta-voz ianomâmi há 30 anos, ele acompanha a expedição também. "Antes éramos nômades, nos movíamos para caçar e procurar alimentos", ele diz. "Com a pressão dos garimpeiros, nós nos tornamos mais sedentários, o que é pior para a alimentação e a saúde". E complementa: "O ouro, os diamantes e até o urânio, cobiçados pelas grandes empresas, devem permanecer no solo. Eles pertencem à terra, é ela que nos alimenta."
Revoltado de linguagem impetuosa, ele se indigna com o luto de sua família, dizimada pelas infecções, e se aflige com a violência que acompanha a chegada dos garimpeiros, apoiados pelas redes de traficantes que ele denuncia continuamente. Ele, que ficou ainda mais famoso com seu livro, "A Queda do Céu" (2010), coescrito com o antropólogo francês Bruce Albert, consegue fazer por horas o inventário dos riscos aos quais o seu povo está exposto. "Há brasileiros que nos apoiam e estrangeiros, em outras partes do mundo", ele diz. "Mas as pessoas que moram perto da nossa casa continuam sendo nossos inimigos, eles e seus poderosos patrocinadores."
Hoje, estima-se que o número de garimpeiros seja superior a 1.300. Um aumento contínuo desde 2009, segundo a Fundação Nacional do Índio. "São efetuadas incursões da polícia, certas pistas da região são dinamitadas, mas de forma insuficiente e pouco aprofundada. Eles acabam voltando", explica Fiona Watson, da Survival International, organização de proteção das condições de vida dos povos nativos.
"Houve diversas ameaças, com momentos de refluxo, mas atualmente é possível sentir uma pressão geral, encorajada até mesmo pelas mais altas esferas do Estado", observa o professor Duarte do Pateo. Apoiados pelas companhias mineradoras e pelos lobbies agrícolas, cerca de 70 projetos de lei que permitem a exploração de territórios indígenas se encontram sobre a mesa do poder legislativo, em Brasília. A região que concentra o maior número de demandas é a terra ianomâmi.
Houve ainda uma reunião no dia 11 de setembro, entre ministros e cerca de 30 deputados da bancada ruralista, que foram defender um texto que visava mudar as regras de demarcação das terras indígenas. Outro projeto visa suspendê-las. Ele foi elaborado pela senadora Katia Abreu, presidente da Confederação da Agricultura do Brasil, conhecida por sua proximidade com membros do governo de Dilma Rousseff.
O contexto é preocupante: os últimos levantamentos indicam um aumento de 437% de superfície desmatada na Amazônia desde a reforma do código florestal aprovada em maio de 2012. O veredicto incontestável do acadêmico é: "A presidente veio dessa esquerda cujo modelo se baseia no progresso econômico e na justiça social. Um modelo do qual estão excluídas as culturas primitivas".
Advogada endurecida por anos de ações ao lado dos ianomâmis, Ana Paula Caldeira Souto Maior reforça: "Tenho a impressão de que regredimos 25 anos. O atual governo se debruça sobre a Amazônia como faziam os militares no tempo da ditadura, ou seja, exclusivamente através do prisma dos recursos naturais, do crescimento e do desenvolvimento".
Na pequena colina de Surucucus, Davi Kopenawa se prepara para ir dormir. Ele agradece aos médicos dos EDS sentados em volta dele. Daqui a alguns dias, quando eles tiverem ido embora, um médico cubano deverá se instalar aqui, como parte do programa governamental Mais Médicos. Serão cinco em todo o território ianomâmi. Davi Kopenawa acha isso bom.
Mas ele quer deixar claro uma coisa, justamente sobre seu encontro com Dilma Rousseff, no final de agosto. Ele diz não ter recebido nenhuma promessa para o futuro, somente a indicação de que ela agiria dentro da Constituição. Dando novamente de ombros, ele diz: "Ela precisa tomar cuidado, a natureza ouve tudo. E, mais importante, ela não se esquece de nada". 

* Reprodução Márcio Melo

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