Tudo o que ele fez foi pedir para voltar para casa.
Da última vez em que o escravo mianmarense fez o mesmo pedido, ele foi espancado quase até a morte. Mas após oito anos fora e forçado a trabalhar em uma embarcação na distante Indonésia, Myint Naing estava disposto a correr o risco para ver sua mãe de novo.
Ele ficou com medo de que desapareceria. E que sua mãe não teria ideia de onde procurá-lo. Myint é um dos mais de 800 atuais e ex-escravos resgatados ou repatriados após uma investigação de um ano pela "Associated Press" sobre o grande problema de trabalho escravo na indústria pesqueira do Sudeste Asiático.
Apenas o setor pesqueiro próspero da Tailândia conta com estimados 200 mil trabalhadores imigrantes, muitos deles forçados a embarcar nos navios pesqueiros após serem enganados, sequestrados ou vendidos. É um negócio brutal que funciona há décadas, com as empresas dependendo de escravos para fornecer peixes aos Estados Unidos, Europa e Japão –tanto para as mesas de jantar quanto para as tigelas dos gatos.
Myint, sua família e amigos narraram sua história para a "AP", que também acompanhou parte de sua jornada. Ela é notavelmente semelhante aos relatos apresentados por muitos dos mais de 330 atuais e ex-escravos de Mianmar, Camboja, Laos e Tailândia entrevistados pessoalmente ou por escrito pela "AP".
Em 1993, um intermediário visitou a aldeia de Myint no sul de Mianmar com a promessa de empregos para homens jovens na Tailândia. Myint tinha apenas 18 anos, nunca tinha viajado, mas sua família estava desesperada por dinheiro. Assim, sua mãe acabou cedendo. Quando o agente retornou, ele fez com que seus novos recrutas pegassem suas malas imediatamente.
A mãe de Myint não estava em casa. Ele nunca pôde se despedir.
Um mês depois, Myint se viu no mar. Após 15 dias, seu navio finalmente ancorou na ilha indonésia remota de Tual, cercada por algumas das zonas de pesca mais ricas do mundo. O capitão tailandês gritou que todos a bordo agora pertenciam a ele: "Vocês mianmarenses nunca mais voltarão para casa. Vocês foram vendidos e ninguém virá resgatá-los".
Myint passava semanas em mar aberto, vivendo apenas de arroz e partes do pescado que ninguém mais comeria. Com a expansão das exportações da indústria pesqueira tailandesa, a pesca em excesso obrigava as traineiras a irem cada vez mais longe em águas estrangeiras. Assim os imigrantes ficavam presos por meses, até mesmo anos, a bordo de prisões flutuantes.
Durante os períodos mais movimentados, os homens trabalhavam até 24 horas por dia. Não havia medicamentos e eles eram forçados a beber água do mar fervida. Aquele que fizesse uma pausa ou adoecesse apanhava do capitão. Os pescadores disseram que os trabalhadores em alguns navios eram mortos se reduzissem o ritmo de trabalho, enquanto outros simplesmente se atiravam ao mar.
Myint recebia apenas US$ 10 por mês, às vezes nada. Em 1996, após três anos, ele se cansou: ele pediu pela primeira vez para voltar para casa.
Seu pedido foi respondido com um golpe de capacete fraturando seu crânio.
Ele fugiu. Uma família indonésia se apiedou de Myint até ele se recuperar e então lhe ofereceu comida e abrigo pelo trabalho dele em sua fazenda. Por cinco anos, ele viveu essa vida simples. Mas não conseguia esquecer de seus parentes em Mianmar ou dos amigos que deixou para trás no navio.
Em 2001, ele soube de um capitão que estava oferecendo levar pescadores de volta para casa se concordassem em trabalhar. Assim, oito anos após ter chegado à Indonésia, ele voltou ao mar.
Mas as condições eram tão terríveis quanto da primeira vez e ele não via o dinheiro. Na verdade, o comércio de escravos tinha piorado. Para atender a crescente demanda, os intermediários às vezes drogavam e sequestravam os trabalhadores migrantes para levá-los a bordo dos navios.
Após nove meses no mar, o capitão de Myint disse à tripulação que os abandonaria para voltar sozinho à Tailândia. Furioso e desesperado, o escravo mianmarense implorou novamente para voltar para casa. Foi aí, segundo ele, que ele foi acorrentado no navio.
Procurando desesperadamente, ele encontrou um pequeno pedaço de metal para abrir o cadeado. Horas depois, ele ouviu um clique. Ele se livrou das correntes. Ele mergulhou nas águas escuras depois da meia-noite e nadou até a costa.
Myint se escondeu sozinho na floresta em Tual. Ele não podia ir à polícia, com medo de que pudessem entregá-lo aos capitães. Ele não tinha nenhum número para ligar para casa, e tinha medo de entrar em contato com a embaixada mianmarense, porque isso o exporia como imigrante ilegal.
Ele tinha perdido quase uma década como escravo e tinha sofrido o que parecia ter sido um derrame, que deixou seu braço direito parcialmente paralisado. Ele começou a acreditar que o capitão estava certo: que não havia como escapar.
Àquela altura ele já tinha se esquecido da aparência de sua mãe e sabia que sua irmãzinha já era uma adulta.
Em 2011, a solidão se tornou insuportável. Myint seguiu para a ilha de Dobo, onde soube que havia uma pequena comunidade de ex-escravos mianmarenses. Ele continuava vivendo discretamente, sobrevivendo dos vegetais que cultivava.
Então, certo dia em abril, um amigo lhe disse sobre uma reportagem da "AP" que levou o governo indonésio a começar a resgatar atuais e ex-escravos. As autoridades foram até Dobo e levaram Myint de volta para Tual –a ilha onde tinha sido escravizado– para se juntar a centenas de outros homens livres.
Após 22 anos na Indonésia, Myint finalmente iria para casa. Mas o que será que ele encontraria?
O voo até a maior cidade de Mianmar, Yangun, foi a princípio assustador. Myint, agora com 40 anos, era um estranho em seu próprio país.
Ao chegar à sua aldeia, ele viu uma mulher mianmarense roliça.
Eles se abraçaram e as lágrimas derramadas eram de alegria e pesar por todo o tempo que passaram separados. "Irmão, é tão bom tê-lo de volta!" suspirou sua irmãzinha. "Nós não precisamos de dinheiro! Nós precisamos da família!"
Minutos depois, ele viu sua mãe correndo em sua direção.
Ele berrou e caiu ao chão. Ela o envolveu em seus braços e acariciou gentilmente sua cabeça, o embalando. Ele estava finalmente livre para ver o rosto de seus sonhos. Ele nunca mais o esqueceria de novo.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
* Uol
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